Bem Vindos

Bem Vindos - Bienvenue - Bienvenidos - Benvenuti - Bine ai Venit

A oliveira ou a ressurreição do Eterno

A OLIVEIRA OU A RESSUREIÇÃO DO ETERNO

Claude Marti-Salazar



As árvores, ele amava-as. Desde sempre: nos primeiros vincos da sua memória, havia grandes folhas de plátano dançando à luz do meio-dia, sussurrantes ramos de pinheiro ao vento do sul (1) e o perfume das acácias em flor oferecido aos longos entardeceres de Maio, rasgados pelas andorinhas. Mais tarde, homenzinho percorrendo os caminhos, tinha alargado o campo das suas amizades. Tinha provado as amoras púrpuras da amoreira preta, tinha aprendido a ternura da figueira que dá duas vezes os seus frutos e chora lágrimas de látex branco ao mínimo ferimento.
Tinha construído ninhos de águias nos mais altos ramos das nogueiras. Tinha dado forma a arcos de avelaneira e enchido a sua aljava de setas de freixo endurecidas no fogo. Tinha lançado pirogas de casca de plátano nas águas da torrente. Tinha fumado acres cigarros de tabaco de sabugueiro e, depois, tossido à vontade atrás da folhagem cúmplice de um buxo gigante.

Chegava mesmo a falar com elas, com as árvores! Era o cipreste do fundo do jardim ou a oliveira do fundo do campo que ouviam as suas confidências, as que nem os pais nem os colegas devem ouvir.

Colocava as mãos no tronco escolhido e as suas grandes mágoas deixavam o seu coração de criança para se meterem no coração lenhoso da árvore: a morte do gatinho tigrado, o zero a Matemática, a partida da namorada, levada para longe pelos pais… o bosque vivo ficava com uma boa parte da sua dor. Voltava então a partir com um passo diferente, mais leve devido a esta partilha fraterna das desgraças.

Em todos os cantos da sua vida estava plantada uma árvore que vigiava, para sempre, na sebe das lembranças. Uma tamargueira para La Fanqui, no Mediterrâneo; uma laranjeira para Castellon de la Plana, um eucalipto para Argel, uma mangueira para Cuba, uma oliveira para Minerva, um pinheiro negro para Hamburgo, um cedro para Beirute, uma avelaneira para Cervione, um pinheiro manso para Roma, uma carrasca – azinheira - para a Fueva dos seus antepassados aragoneses.

Tinha, finalmente, chegado à idade madura. A idade madura, para um homem, é quando ele se torna o fruto maduro da sua própria existência, rica de trabalho, de encontros, de família, de tentativas conseguidas, de encontros fracassados.

Chegou o momento, para ele, de gerir o seu tempo de reforma, intervalo de liberdade vigiada, permitida pela sociedade antes da colheita final.

Ao longo dos habituais itinerários que traçou a meio caminho entre a sua casa e o horizonte, as árvores esperavam-no. O homem saudava-as a toda com uma palavra, com um aceno, à medida que as ia encontrando. Primeiro, o renque de plátanos; depois, as figueiras que não gostavam de se afastar das casas, as amendoeiras na orla das vinhas, os ciprestes protectores, os pinheiros de Alep com agulhas macias, as oliveiras sabiamente alinhadas nos seus vedações de pedras secas.

O homem sabia-as descendentes – como ele próprio – da primeira célula nascida no caldo dos primeiros oceanos, e apaixonadas – como ele – pelos raios do Sol.

Admirava a sua aparente imobilidade debaixo do céu, ao passo que, na realidade, eram infatigáveis viajantes…

Viajantes, as árvores? Exactamente.

A amendoeira e a oliveira tinham atravessado o Mediterrâneo com os Fócios (2), co-fundadores de Marselha! A figueira? Uma nativa da Ásia ocidental, uma artista da doçura celebrada pelos escribas do faraó, a árvore divina da Terra Prometida, passada para o ocidente com os marinheiros gregos. O plátano? Um turco naturalizado francês no séc. XVI. O pinheiro de Alep? Um libanês. O cipreste? Um irano-sírio desembarcado nas nossas costas com um passaporte greco-romano!

Todos se tinham expandido à vontade diante do mar latino. Em seguida, tinham conquistado o interior do país, grãos transportados pelas charretes dos mercadores, presos nos bicos das aves, levados pelo vento.

Sem estes estrangeiros, as linhas curvas das nossas colinas não teriam a mesma maneira de captar a luz, monótona seria a nossa alimentação, mais estreitos o nosso saber e a nossa percepção do mundo, diferente a nossa forma de olhar o céu.

O homem que amava as árvores tentava imaginar os vales, as encostas dos montes, os planaltos e as planícies reduzidas à única cobertura vegetal indígena tecida de freixos, de amieiros, de avelaneiras, de tílias… E agradecia aos deuses alados por terem posto no coração dos homens e das árvores a necessária paixão pela viagem.

De todos estes imigrantes, as oliveiras eram as suas preferidas. Uma delas tinha lançado as suas raízes ao abrigo de um veio de calcário, numa soalheira encosta onde se tinha estabelecido há séculos, estava inscrito na espessura do seu tronco e no poder da sua ramagem.

Na aldeia, toda a gente o conhecia. Gostavam dele e não o queriam perder: é certo que ele tinha conhecido os primeiros Fabre, os primeiros Pagès, os primeiros Teisseire, os primeiros Astruc, e os Pastre, e os Vialade, e os Cros! Ele era a testemunha silenciosa que via desfilar os coortes efémeros das gerações humanas, que autenticava a história, marcando-a com a chancela da sua inalterável vida.

O Eterno, foi este o nome que lhe demos.
Dizia-se que ele tinha sobrevivido aos golpes dos cuteleiros de Simon de Monfort, aos archotes dos membros da liga, à enorme invasão da videira aramon (3).

O homem que amava as árvores detinha-se todos os dias diante do Eterno. Poisava as mãos no tronco do colosso com a alegre sensação - cada vez - de tratar por tu a eternidade.

E eis que numa terrível manhã de um azul metálico, uma fria manhã de Novembro, mesmo antes de chegar ao caminho que levava ao Eterno, ele teve o pressentimento de um drama definitivo. Apressou o passo.

Ao fundo, sob o veio rochoso, a oliveira não passava de um esqueleto calcinado, erguido no meio de um monte de cinzas.

Uma queimada mal controlada, uma passageira negligência humana tinha morto o Eterno.

O homem partiu muito depressa, sem olhar para trás.

O Inverno, a Primavera, o Verão e outra vez o Outono continuaram a vê-lo seguir pistas diferentes, longe da fogueira onde o tempo, teimoso, tinha, finalmente, conseguido vingar-se.

Um dia, no entanto, decidiu lutar contra si próprio para retomar o caminho “de antes”, aquele que tantas vezes o tinha visto meditar diante do Eterno.

O obscuro desejo de passar um traço nas recordações, de se convencer de uma vez por todas da morte de uma árvore que também ele acabou por crer imortal. Parou diante do gigante fulminado e, maquinalmente, pôs-se a acariciar o ramo de folhas carbonizadas.

E sentiu, de repente, debaixo dos dedos, como que um delicado veio de frescura.

Abriu a mão: ao longo de todo o pequeno ramo, entre as folhas recurvadas, jovens rebentos que acabavam de despontar estendiam os seus minúsculos limbos em direcção à luz…

Ao homem que amava as árvores só lhe restava voltar a descer em direcção à aldeia para anunciar a boa-nova: lá em cima, na encosta, o Eterno voltava à vida.

Para a eternidade, nunca tinha duvidado disso.







NOTAS

1 De cers – do baixo Languedoc

2 De Focea, Grécia; marselhês;

3 Casta de videira de uvas pretas do Languedoc.